domingo, 14 de agosto de 2016

E haja kshanti...

As primeiras vezes que eu tentei meditar cheguei apenas naquele estado de leve sonolência que o Paul McCartney uma vez descreveu em uma entrevista. Acho que na verdade o Paul não conseguia meditar porque estava doidão de LSD, e das primeiras vezes acho que não consegui porque eu estava doidaço de maconha. Com o tempo aprendi a fazer a coisa direito e fui aos poucos passando mais tempo em transe, mas eu nunca tinha imaginado que poderia passar meses sem parar de meditar nem por água, nem comida, meses sem número um ou número dois.

Eu saí fugido do Rio de Janeiro e fui me esconder em um retiro de meditação. No começo eu era um alien ou todos eram aliens ali, mas pelo menos eu estava seguro como prometeu o Capitão Ferro enquanto deixávamos o Copacabana Palace pela saída lateral. À primeira vista era muito estranho o modus vivendis dos budistas mineiros e a ideia de que saindo dali eu trocaria para o meu modus morrendis é que me deu um empurrãozinho para a interação com meus novos vizinhos.

Rasparam minha cabeça quando eu deixei a cannabis sativa um pouco de lado e aprendi a meditar e também me ensinaram as Seis Paramitas, que são:
  1. Generosidade (Dana);
  2. Moralidade (Shila);
  3. Paciência (Kshanti);
  4. Diligência (Virya);
  5. Concentração (Samadhi);
  6. Sabedoria (Prajña).
Não fiz amigos. Na verdade não sabia se não queriam ser amigos de alguém protegido pelo programa de proteção a testemunhas ou se eles tinham outro conceito de amizade. Agora eu posso dizer que mesmo sem algum amigo a la ocidente eu me sentia muito bem amado por todos, algo quase cristão, não digo que era um amor cristão porque os cristãos se odeiam, mas era como os cristãos deveriam se amar, definitivamente. Uma sensação quentinha de paz comum e fraternidade. Quem dera também tivéssemos uma bancada budista ali entre a dos demônios e a dos ruralistas.

Enfim houve um dia que eu comecei a meditar e não parei mais. Como eu disse, nem minha vontade de colocar coisas pra dentro e coisas pra fora impediram que eu seguisse na mais absoluta paz interior, alheio ao sol, às chuvas e aos ventos naquele vilarejo entre lindíssimas e imaculadas cachoeiras em Carrancas. O tempo passou, fiquei meditando em outra atmosfera por precisamente 156 dias. Sim, bati Cristo e Ele não virou a outra face. Não que eu tenha visto.

O fato é que eu despertei do meu transe e durante uma longa tarde no banheiro li as manchetes de um jornal velho que usavam para prender a porta do banheiro aberta enquanto não estava sendo usado. Arejar um banheiro de budistas é importante, eles não fazem as necessidades em intervalos regulares, sabe?

A primeira manchete falava da Presidente da República e era um pouco esquisita, mas como se tratava do Jornal O Globo, relevei a parte que dizia "Dilmanta já era de vez". Á esquerda, algumas notas sobre beijos gays nas Olimpíadas Rio 2016. Tudo bem, eu fiquei meditando bastante tempo, já estão rolando os Jogos Olímpicos. À direita, uma charge mostrava um brasileiro chorando com os preços de uma vitrine em Nova Iorque. Tudo bem, o dólar já andava alto quando eu ainda tinha cabelos. Parecia mesmo tudo bem, tudo normal admitindo o padrão O Globo de realidade. Tudo muito bem até eu virar o jornal para ler a continuação da primeira página.

Acontece que abaixo da dobra havia a foto de um bandido com a legenda "Presidente Santo Temer empossa 40 anjos". Mas espera aí, esse cara não é santo, muito pelo contrário... e esses outros não são anjos, são ladrões fichados... opa, calma, respira... segura o cocô... esse cara não era presidente antes do meu intestino entrar em transe! Chegava a hora de exercitar a minha santa paciência paramita. E haja kshanti...


sábado, 13 de fevereiro de 2016

Cor de burro quando foge

Saímos do Copacabana Palace, os quatro no carrão do Sr. Vega. À frente, o próprio Túlio Vega, investigador da Polícia Federal e o veterinário das estrelas Dr. Polita no banco do carona. Atrás, o Capitão Ferro, eu e a Rita, que miava impaciente de dentro de uma caixa de papelão furada nas laterais. Na mala, a minha mala.

Eles também corriam perigo por seu envolvimento comigo. Todavia, somente eu estava sendo levado para um esconderijo isolado. Vega estacionou mal parado em frente a uma casa comercial velha e mal cuidada no Humaitá.

Eu deveria entrar e dirigir a palavra ao atendente na recepção. Fazer uma pergunta objetiva, "E a gota?". Ele deveria responder que foi ao médico e que não foi atendido, mas que não está nada bem. Eu deveria dizer "Nem U.P.A. 24H?" e ouvi-lo negar e completar dizendo que "A Dilma que se foda!".

Eu tentaria uma sugestão, "Já tentou o Hospital Estadual Pedro II?", e ainda ouviria "O Pedro II e o Pezão que se comam e se explodam cu a dentro!". Aí sim eu seria conduzido a um Chevette de placa fria e costas quentes. Depois, serra. Minas. Um retiro de meditação na cidade de Carrancas, trezentos quilômetros ao sul de B.H. Não sabia como arranjaria trabalho estando isolado no mato com neo-budistas mas, se tem uma coisa que me compra, essa coisa se chama Despesas Pagas.

A casa comercial que eu observava da calçada parecia lotada. Parecia dia de festa. Na fachada, li:

"CASA DE XANGÔ
BABALORIXÁ MARIA DE XANGÔ
& FILHOS DE SÃO JUDAS"

Não era festa, mas tinha música e alegria. Fiquei curioso, nunca entrara num terreiroaSubiEntreiontreioo degraus e meio e toquei a campainha. Ninguém ouviria. Testei a porta e ela abriu.

Enfiei o resto do McFish goela a dentro. Desci os quatro degraus e meio, peguei minhas coisas. Me despedi das únicas três pessoas em que eu podia confiar. Ninguém respondeu. Subi novamente os degraus. Entrei.

O barulho ficava cada vez mais alto casa a dentro, mas não cheguei a ver ninguém. Subi as escadas para o segundo andar seguindo um rapaz surdo, mudo e cego. Um cômodo apenas, uma escrivaninha escolar no canto. Uma portinha e um banheiro. Um rádio/toca-fitas sobre o tampo da escrivaninha. Gambiarras na tomada. O ruído escruciante de uma caixa de som estourada no último volume. Uma fita reproduzia o som característico de um terreiro em noite de sessão aberta.

O menino surdo, mudo e cego desceu novamente as escadas. Saiu deslizando uma das mãos pela parede e coçando com o outro pulso a cicatriz no lugar dos olhos. Do banheiro, sai um vidente.

Ouvinte, falante e vidente. Ele para na minha frente. Estanque. Mau. Mede com o olhar a minha cara, o meu terno sob medida, a minha mala de ginástica e a minha caixa de papelão furada nas laterais. Olhos no útero dos meus olhos. Silêncio. Tirando o esporro religioso que tremia nos alto-falantes.

Achei que deveria dirigir minha palavra a ele. Tive que gritar pra me ouvir. E me fazer ouvir. E me esforçar para ouvi-lo, ainda que o falante também gritasse.

— COMO É QUE TÁ, TUDO BEM COM O SENHOR?

— TUDO BEM, E COM O SENHOR?

— TUDO ÓTIMO, E A FAMÍLIA?

— VAI BEM, OBRIGADO!

— POR NADA! E VOCÊ?

— EU O QUÊ?

— A FAMÍLIA.

— QUÊ QUE TEM?

— VAI BEM?

— A FAMÍLIA?

— É!

— VAI BEM.

— OBRIGADO.

— OBRIGADO.

— NÃO TEM DE QUÊ.

— IMAGINA. E A GOTA?

— FUI AO MÉDICO MAS NÃO TINHA ATENDIMENTO. NÃO ESTÁ NADA BEM.

— NEM A U.P.A 24H?

— A DILMA QUE SE FODA!

— JÁ TENTOU O HOSPITAL ESTADUAL PEDRO II?

— O PEDRO II E O PEZÃO QUE SE COMAM E SE EXPLODAM CU A DENTRO!

Desci pelos fundos levando a Rita. Ele me ajudou com a bagagem. Falei alguma bobagem. Ele não ouviu. Entramos no Chevette cor de burro quando foge, a Rita e eu. Viramos à direita seguindo o fluxo. Abri a caixa de papelão e deixei a Rita fazer as suas unhas no estofado do carona. Sumimos no Rebouças.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Colônia de pulgas

Não sei como fui parar na suíte do Doutor Simas Polita. Pediatra rico e frustrado, encontrou mais realização e dinheiro na veterinária. Concluiu sua formação em Oxford e hoje é conhecido como o veterinário das estrelas em Miami. Casou-se com uma lindíssima e infiel jovem ex-BBB mexicana, Jimena Longoria.

O Dr. Polita contratou meus serviços ainda na minha primeira semana no Copacabana Palace. Aceitei um gatinho preto ainda filhote como pagamento. Uma gatinha. Ele não podia levantar suspeitas movimentando a conta conjunta. Tudo bem. Eu não tinha muito o que fazer até a quarta-feira de cinzas. E a gatinha preta gostou de mim. Dei o nome de Rita.

Estava na cola da Jimena cem por cento do tempo, enquanto ela não deixasse o hotel, claro. Talvez por isso o doutor tenha me acolhido depois do desmaio. Retribuiu a minha dedicação ao caso dele, um cliente quase pró-bono pra mim, e ao mesmo tempo um caso de grande importância para a colônia de pulgas prosperando atrás de suas orelhas quentes. O Polita praticamente salvara a minha vida e eu me senti quase bem, mas ainda não sabia como fora parar ali.

Lembrei de acender a pontinha de um baseado na noite anterior, do vulto atrás de mim no reflexo da TV. O tiro sufocado pelo barulho ensurdecedor do panelaço do Copa. Lembrei também dos olhos injetados do atirador esperando eu terminar de fingir a minha morte e do sangue encharcando a ombreira do meu Caraceni vermelho.

Agora nu, e zonzo, acordava sem sentir o braço esquerdo. Chamei pelo doutor e nada. Jimena também. Nada. Falei mais alto e decidi fechar a boca antes de terminar a frase. Certamente, se os interessados soubessem da minha sobrevida, eu já estaria sob a terra.

Recobrei a consciência devagar e, deitado ali no quarto vazio, percebi três coisas. Um ferimento suturado no ombro. As janelas, cortinas e portas, tudo fechado. Um barulho vivo vindo de baixo da cama. O som de uma pessoa se mexendo no carpete.

Reconheci o ruído de alguém se coçando impaciente. De repente, um susto. Desenhando a manobra com perfeição acrobática, pousou nas minhas pernas uma linda gatinha preta. Rita.

A pretinha se coçava bastante e, com medo de eventuais coceiras em mim mesmo, tomei a liberdade de chutar gentilmente seu traseiro felino de volta pro carpete felpudo. Ela reclamou um miau baixinho e voltou pra baixo da cama do Polita, onde eu gozava o meu repouso pós-tentativa-de-homicídio.

A porta dupla da ante-sala — ou seria ante-quarto? Mistérios do Copa... — abriu. Avistei três homens. Entraram um a um, sentando-se nas poltronas centenárias que circundavam a cama. A Rita não gostou de alguma coisa e tentou fugir.

Foi interceptada pelo primeiro a entrar no quarto, o Doutor Simas Polita, meu salvador. Ele se sentou  ao meu lado e foi seguido pelo Capitão de Fragata Luiz Felipe Ferro. O terceiro a entrar foi o primeiro dos três a conhecer a minha história e o meu charme, o Investigador da PF Túlio Vega.

Ele parecia me conhecer bem, ainda que tivéssemos trocado poucas palavras depois de protocolada a Operação Panamá. Trouxe uma sacola de papel pardo onde se lia uma letra "M" de Morte... ou de McDonald's.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Copa das panelas

Liguei a tv voltando da piscina do Copa. Só de toalha. Deixei-a cair. O meu guarda-costas, Mick Jackson, não curte cavalheiros como eu, só damas. Deixou o recinto como eu previra. Me senti um bom jogador de xadrês. Ainda que eu não saiba os movimentos.  E as peças. Só sei o que é roque.

Aumentei o volume e ouvi o que falava William Bonner com voz de televisão:

"Boa noite. Manifestações são esperadas durante o pronunciamento da Presidente da República Dilma Rousseff, no primeiro intervalo comercial desta edição do Jornal Nacional.
A Presidente Dilma deve abordar a histórica e sem precedentes crise orçamentária da União, claramente causada pelo Bolsa Família e pela corrupção na Copa do Mundo da Fifa no Brasil neste ano, da qual a Globo não fez, não faz e não fará parte, que corroe não só o seu governo, mas também o apoio do PMDB, um dos últimos partidos políticos honrados do país.
No Twitter, os meus seguidores estão combinando o que pode ser considerado o maior panelaço da história da dramaturgia jornalística brasileira. Hashtag beijo do Tio.
Veja após os comerciais, a mais nova invenção da indústria automobilística americana, um pioneiro carro sustentável. Você vai conhecer o Boo Car, o simpático carro movido a medo que promete revolucionar o transporte e a qualidade de vida no planeta."

Ouvi algumas pessoas dizerem que algumas pessoas em algumas ruas do país ouviram somente algumas pessoas aderindo ao maior panelaço da história. Poucas panelas. Não aqui.

No ano da Copa, o Copa estava cheio de brasileiros. Muitos abastados. Alguns auto-exilados em Miami. A maioria dantesca de playboys e reaças não assistem a jornal nenhum, mas seguem o Tio no Twitter.

Como com qualquer hóspede, o hotel atendeu às excentricidades sem questionar. Claro que era raro tantos pedidos iguais na mesma tarde. O serviço de quarto do Copacabana Palace entregou pares de panelas em dezenas de suítes em algumas horas.

O primeiro intervalo comercial daquela edição do Jornal Nacional começou. Uma vinheta do Governo Federal anunciava um pronunciamento. Antes mesmo do rosto gasto da Presidente da República aparecer ali, na telinha dos vampiros, teve início um protesto coletivo dos hóspedes. Algo sem precedentes no Palace.

O protesto mais elitista do Brasil. Manifestantes privilegiados. Panelas ricas. Vesti meu terno vermelho.

Sob a trovoada retumbante do panelaço revoltado, não deu pra ouvir o tiro que matou o meu guarda-costas. Nem os tiros que mataram os outros agentes da Operação Panamá.

Ajeitei o chapéu. Acendi uma pontinha me olhando no reflexo da televisão desligada. Eu tinha desistido de tentar ouvir o pronunciamento sufocado da Dilma. No reflexo, atrás de mim, uma silhueta desenhada na meia-luz.

Me virei, vi o revólver, ouvi o tiro, senti a bala. No ombro esquerdo. Não deu pra ver o sangue inundando o terno vermelho. Não deu pra ver o rosto do matador atrás da máscara de meia calça, só o sangue nos olhos.

Lembrei das aranhas que já persegui na parede do lavabo no Catete. Caí no chão. Simulei a minha morte. Perdi de vista o meu quase assassino pela porta da ante-sala, ou ante-quarto. Perdi uma bela dose do meu sangue bom, ou ruim. Dormi.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Crime na casa de máquinas

Mais visitas dos investigadores da PF, mais detectores de mentira, mais jornalistas no saguão do hotel. Os desdobramentos do caso Roberto Carlos ajudaram a levantar mais um pouquinho a minha popularidade.

Aumentaram também a guarnição da minha segurança e tiveram que me mudar pra suíte presidencial. Um guarda-costas passou a morar na ala leste do meu novo e luxuoso quarto.

É impossível fumar maconha com um guarda-costas da Polícia Federal na sua cola. Eu precisava dançar conforme a música. Já no primeiro dia da nova estadia, comecei a improvisar.

Hoje estou aqui na casa de máquinas... torrando um boldo com o Pablo da recepção enquanto a guerra às drogas continua brincando de pique-esconde com a paz.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O colar de rubis vermelhos cubanos

Quem diria. Eu nunca tinha ponderado a quantidade preponderante de poderosos que traem no Copacabana Palace. O Capitão de Fragata Luiz Felipe Ferro conseguiu acesso à minha suíte devido ao seu bom relacionamento com o os agentes no comando da Operação Panamá.

Batizada com uma referência ao chapéu que praticamente já não saía mais da minha cabeça, a operação conferiu uns quilinhos a mais pro meu ego. E quem diria.

Em menos de uma semana, engordaria também o cofrinho guardado no closet da colossal suíte em que eu gozava a mais produtiva clausura desde os tempos de lavabo. Também ganhei uns quilinhos.

O terno vermelho foi rapidamente ficando mais apertado enquanto eu comia todos os croissants e pastéis de belém que cruzavam o meu caminho. Estadia e comida de graça. No Copa.

O meu terno parou de fechar, os botões não se viam mais, separados por uma barriga de Coca-Cola e croissant. Lados opostos da moeda. As mangas já surradas começaram a apertar como nunca no sovaco. Precisava de um terno novo. Dois. Vermelhos.

Comprei, com o dinheiro que restava do caso do Roberto Carlos, dois ternos à altura do Palace. Um pra vestir na hora e outro sob medida. Um chapéu Borsalino, um clássico Fedora branco com fita de gorgurão preta.

Gastei todo o meu dinheiro naqueles pedaços de falsos status de pano, mas a comida era de graça... e em todo caso eu não podia deixar o hotel mesmo. E precisava de um ajuste no visual. Ainda queria faturar em cima dos quinze segundos de sensacionalismo barato.

Barba, cabelo e bigode no Copacabana Palace Salon. Banho revitalizante no Copacabana Palace Spa. Vesti o meu terno e chapéus novos. Olhei pro elegante e obstinado detetive me encarando no espelho. O terno vermelho me caía mesmo muito bem. E bem a tempo. Um agente anunciou uma visita na ante-sala. Ou seria ante-quarto?

— E eu posso receber visita?

— O Capitão de Fragata Luiz Felipe Ferro está à sua espera. Legal, o terno.

Encontrei o Capitão Ferro bebendo uísque no bar do ante-quarto. O copo de cristal tradicional do Copa na mão direita e algo brilhava na mão esquerda. Algo vermelho.

Contas reluzentes pendiam do dedo indicador do oficial da Marinha conhecido por beber e matar demais na sua época. Estendeu a mão esquerda.

O coroa parecia um velho rico e amargurado. Trajes oficiais impecáveis. Medalhas. Cabelinho ralo de milico velho. Alto. Hálito altamente etílico. Olhos quase vesgos, quase dementes. Não achei que exigiria as honras de uma reverência adequada a um oficial superior reformado.

— O que é isto? — perguntei sem cumprimentá-lo.

— O colar de rubis vermelhos cubanos dela.

Ela? Aquilo soou e cheirou a caso de traição. Ele sentou ofegante. Contou a história. Ela estaria no hotel na quarta-feira de cinzas. Escreveu o nome dela e o número do quarto no verso de um cartão de visita qualquer.

Preencheu e assinou o cheque. Guardou o colar cubano no bolso direito de sua farda azul. Não... o colar não era cubano, cubanos eram os rubis. Guardei o cheque no bolso interno esquerdo do meu Caraceni vermelho.

Oficialmente, o primeiro cliente militar da minha carreira. Um oficial assassino aposentado. Bêbado. Corno. Apertei sua mão.


sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Sábado de sol

O Copacabana Palace comportava muito bem a segurança envolvida na minha proteção. Pro hotel, mesmo com todos os agentes brasileiros e americanos disparados pra lá e pra cá numa verdadeira operação de guerra, aquele dia não tinha nada de muito especial.

Eu não sou estrangeiro e isso podia ser estranho na rotina internacional do mais famoso cinco estrelas do Brasil. Pras centenas de funcionários, no entanto, aquele era só mais um sábado de sol.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Terrinha de pavões e galos de briga

Vesti meu terno vermelho pela primeira vez em um dia quente. Arranquei o microfone da mãos trêmulas de sensacionalismo barato da Repórter Kauso da Record.

Titular em inserts de fofoca em programas de bosta, Solange Kauso cumpria o seu plantão policial para o Cidade Alerta na segunda-feira gorda mais surreal da minha vida. Seus braços tremiam, tremiam... como os braços de quem encena um ataque epilético. Em uma peça infantil mal escrita, mal dirigida e mal atuada. Ou uma caricatura disso. E então parou de tremer. Abocanhei o trombone.

A minha chance de aparecer. As coisas mudaram, sabe? O mundo mudou. No meu tempo de garotão você era bom em alguma coisa... e se você era muito bom em alguma coisa, você se destacava. Aparecia. Era premiado com o prestígio... e a popularidade vinha como a chuva vem depois de um dia muito quente. Comecei a falar olhando pra câmera. Começou a chover.

As coisas mudaram, a ordem das coisas mudou. Hoje, primeiro, você aparece. No mundo ocidental como um todo, algumas pessoas chegam a provocar situações grandiosas, violentas, constrangedoras. Quem nunca ouviu falar de Geisy Arruda?

Sempre me pergunto por que é que sempre a Luana Piovani vai parar na delegacia. A Luana Piovani sempre aparece. Inclusive nos inserts de fofoca da Solange. Tem gente que passa uma vida procurando uma oportunidade de aparecer. Não uma oportunidade de mostrar o talento, mas de mostrar a si. Talento tá difícil. E as penas, coloridas com Wellaton, precedem o pavão.

Estamos no Brasil do século XXI, terrinha de pavões e galos de briga. E hoje eu sou um galo velho com penas e olhos vermelhos, coloridos como os anos 70.

Era a minha chance de aparecer depois de muito, muito baseado e pouco, porém suado, trabalho. Eu era um galo velho com penas vermelhas, uma fita de vídeo no bolso e que não quer perder mais uma briga. A Rita foi assassinada, eu tinha como provar.

Aparecer na televisão e ganhar audiência às custas da morte matada da sua irmã não parece muito bonito. Tento pensar em todo o amor que ela nunca conseguia demonstrar.

Tento achar que foi um empurrãozinho póstumo. Uma mãozinha do além pra compensar todos os ataques histéricos, os ferimentos a faca e as horas e horas confinado de pernas dormentes sobre o acento da privada no lavabo/quarto/escritório/esconderijo. Alguns segundos de culpa e eu lembro que ela sofrera um crime fatal e merecia justiça. E eu era um galo velho de penas vermelhas e estava acuado. Nunca provoque um galo de briga.

Falei tudo com muita clareza. Olhei pro centro da lente, no diafrágma da câmera. As primeiras três ou quatro palavras saíram quase atropeladas, mas assim que eu percebi que não tinha mais como voltar atrás, o peso e o medo desapareceram. Como quando as cortinas abrem e um ator pisa no palco e as coisas mudam.

E assim, de uma hora pra outra, senti a minha plumagem púrpura e surrada aprumar-se. Metamorfose. As penas foram alongando e tomando algumas colorações exuberantes aqui e ali. Brilhavam como mágica. Mudei.

Falei tudo olhando pra menina dos olhos da câmera e dos milhões de brasileiros que assistem ao programa de barbáries da Rede Record. Carisma, determinação e cumplicidade. Brilhei como um pavão na avenida em sábado de carnaval.

Àquela altura os direitos humanos e a polícia federal também tinham aparecido. Depois de conversar com a Solange Kauso, conversei também com o Marcelo Freixo e o investigador da PF. Saí de casa só com a roupa do corpo, terno vermelho e panamá branco. A fita e os cigarros da Rita no bolso. Fui direto da aparição no programa Cidade Alerta para o Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas.

Eu precisava de um novo lugar pra ficar, mais seguro. Entrei no carrão do investigador Túlio Vega. Deixamos a Rua Silveira Martins. Ele perguntou se eu estava me sentindo bem. Sujeito gente fina esse Vega.

— O senhor tem certeza? Precisa passar em algum lugar? Deve ter algum remédio que o senhor precise, a gente passa numa farmácia... — claro que eu entendia a preocupação. Aconteceu muita coisa em um dia só pra um detetive velho como eu. Mas eu estava mesmo muitíssimo bem. Que jogada.... pela primeira vez naquele dia eu senti o vento soprando com vontade a meu favor. A primeira vez na vida. Adoro comer carne quando me sinto comemorável.

— McDonald's?


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Puta publicidade

Eu mesmo liguei pra polícia, a polícia mesmo deve ter ligado pra Record. Esses putos se comem. Os policiais, peritos, paramédicos, IML, a repórter do Cidade Alerta, o câmera do Cidade Alerta. Todos na minha sala.

As horas passam... alguém bate à porta do lavabo. Abro só uma fresta, nu. Estico o pescocinho pra ver quem chama e dou de cara com o meu reflexo de ponta-cabeça na lente da câmera. De trás do cinegrafista, a voz da repórter Solange Kauso indaga veemente:

— Qual a emoção de se deparar com essa, como bem diz Wagner Montes, covardia egoísta, a sua irmã, uma fugitiva da Interpol, se matar e ainda responsabilizar o senhor, um trabalhador brasileiro, conta pra gente a emoção dessa perda brutal!

A pergunta foi longa e estúpida demais, e eu parei de ouvir depois do "covardia egoísta". Ora, se você soubesse, queridinha, que isso foi um cala-a-boca, ainda assim você me ofenderia com sua petulante indiferença? Um circo, aquilo.

Eu me senti num circo bolorento daqueles que ainda mantém animais e bolores. Eu no centro do picadeiro. O animal me entrevistando. Uma pergunta bolorenta. Agora eu estava em foco e travei. Suspirei de vagar meio em transe, pensando em como responder àquela coisa escrota sensacionalista. Franzir o cenho e dizer que é uma perda terrível? Forçar uns soluços? Forçar uns soluços e fechar a porta? Fechar a porta? Fechei a porta.

Sentei no vaso de novo, tirei do potinho do fio-dental uma pontinha de fino-mentol. Uma bagana de maconha mentolada. Eles fazem isso pra atravessar a fronteira e os narizes caninos da Polícia Federal. Eu tinha enfiado a pontinha ali depois de ter sumido com todos os flagrantes e antes de chamar os canas e os canas chamarem o circo dos bolores.

Claro que se você acende, o cheiro de erva atravessa a porta do lavabo como um dedinho encantado flutuante, convidando o PM, conduzindo-o no ar como o cheiro de uma deliciosa panqueca conduz um Pato Donald à deliciosa panqueca. Resolvi deixar a panqueca pra mais tarde.

Acendi um cigarro mentolado da Rita. "Pensa, pensa, pensa". Lá fora, a repórter Solange Kauso batia e repetia "Seu Max?... Max... Max...". "Pensa, pensa, pensa". Pensei.

Pera aí... eu ainda tenho a CDD 250H... os sacanas que mataram a minha irmã ainda não sabem disso, até onde eu sei. Tudo o que eu sei, aliás, é que algo fede. Não aqui no lavabo.

Primeiro sai o anúncio do Roberto Carlos comendo carne na TV. Também teve o caso da biografia do Rei recolhida e a nova legislação de censura às biografias. Os rumores de que Lulinha era o dono da Friboi nunca descansaram muito tempo nos meus ouvidos. E aí o vídeo que eu mesmo filmei naquela tarde. Tudo muito louco, vendo de fora nada disso parecia ter ligação. Não fazia a menor ideia do que estava acontecendo sob as cortinas de fumaça da realeza brasileira. Mas há fogo. E quem é aquele cara, o Raul, o cliente que pagou adiantado pra descobrir os segredos do Roberto?

— Max... Max... Max...

Bem... isso é importante, mas não eram perguntas sem resposta que eu procurava agora. Fui realizando na minha cabeça que, óbvio, o caso estava encerrado, o contrato me protegia de situações de alto risco como essa. A grana é minha e não devo mais satisfação a Raul, Fidel ou a quem quer que seja.

— Max...

Eu tinha a fita. Perdera a Rita. A Record estava quase na porta da minha bunda querendo audiência. E adorariam crucificar um Rei Global. Os PMs não sabem de nada, fato... tá na cara... sempre... pelo menos aqui no Rio. Minha irmã foi assassinada porque alguém queria o meu silêncio. Mas matar depois do barulho seria como chover no molhado. A boca secou. Eu precisava de dinheiro... sempre. Aparecer na telinha é uma puta publicidade... sempre.

— Max...

Roupas, ninguém acreditaria em um cinquentão pelado. Fucei o cesto de roupa suja e encontrei um terno vermelho que eu visto em casa nos dias frios. Tinha um terno verde, um azul e um vermelho. Usei o verde e o azul até puírem de vez. Era a vez do vermelho. No cesto ainda, uma camisa e uma gravata. Pendente no gancho sob as toalhas, um chapéu panamá branco com fita preta. A fita da CDD 250H saiu fácil do bolso do jeans jogado em frente vaso. Apaguei o cigarro. Abri a porta.


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Pipoca doce no chão

Ninguém entrou ou saiu do prédio do Rei. A carruagem do gran príncipe foi embora sem o Lulinha. Ah, quer saber... vou meter o pé daqui, ver esse vídeo com calma fumando um e comendo uma pipoquinha. Se eu vi o que eu vi mesmo, e eu sei que eu vi o que eu vi, certo como dois e dois são cinco, acho que não preciso mais trabalhar essa semana.

A julgar pelas possibilidades que se abrem como um leque de notas de cem dólares no meu horizonte não tão tão distante, talvez eu não precise trabalhar. Nunca mais.

Chega de morar no lavabo, chega de Chevette, chega de táxi, chega de Rita, chega de Ferro, Tauã, chega de Dalva, de bagulho ruim, chega de beber escondido na mureta da Urca, chega de só tomar e continuar assustado em cima do muro! Chega de Dilma? Não, eu gosto da Dilma, uma mulher honrada. Comprei pipoca doce na esquina de casa. Chega de sal. Chego no apartamento e encontro a minha irmã morta. Pipoca doce no chão.

Pulsos cortados. A casa estava um caos, tudo quebrado, jogado, revirado, porque era assim sempre, mesmo. A Rita quebrou tudo, sempre quebrava tudo. Tinha dinheiro mas não tinha vida. Mas... cara... ela queria ter. Queria viver. Jamais cortaria a própria vida.

Os sacanas cortaram os pulsos e escreveram uma carta de suicídio. Sei disso porque a carta dizia "Me matei porque vi você na Urca hoje. Beijos, Rita"... ela era louca, pros canas era suicídio e pronto. Pra mim era um sustinho de mafioso com cisminha de perseguição. Filhos da puta. A Rita se foi e de mim levou o sorriso. De novo. E o assunto. Por hoje.


segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Reconheço um boi de longe

O melhor detetive é aquele que segue o protocolo, mesmo com essa ressaca sem fim. Comi demais. Ontem ninguém ligou. Nem o RC, nem ninguém. Fumei uma penca de baseados e umas dezenas de cigarros no lavabo me escondendo da Rita, minha irmã histérica. Argh... segunda-feira sem fim.

Hoje, pretendo andar com o caso do Rei Roberto, busquei o meu Chevette no Martelinho de Ouro, almocei uma salada leve com McNuggets e aqui estou plantado há horas em uma esquina bem posicionada na Urca. Sou mestre na arte de ficar parado, olhando, sem fazer nada durante uma eternidade.

A angulação que eu escolhi pra estacionar me ajuda a observar muito bem a entrada da Propriedade Real e a distância me ajuda a não ser reparado. Ou não. Passei na loja de conveniência da Avenida Pasteur e comprei um maço de Kamel, umas balinhas, uma Coca grande e uma Smoking pequena.

Tava quase fechando aquele beque digestivo quando vi uma BMW contornar o balão, voltar lá por cima e parar em frente ao prédio que eu vigiava.

Um homem com roupas muito caras e razoavelmente mal vestido sai do carrão antes que o motorista pudesse dar a volta completa para abrir a porta.

A surpresa foi grande? Perturbadora! O susto me fez dar um pulinho no banco do Chevette e a maconha voou por cima do painel, de mim e do banco do carona.

O homem foi sozinho até a guarita, se identificou, entrou pelo portão de vidro levando o que parecia um pesado pedaço de carne nos braços — certamente uma peça de picanha — que o motorista entregara enquanto o porteiro falava com a segurança do Roberto Carlos. Eu sou um excelente fisionomista, reconheço um boi de longe. Subiu dois degraus e sumiu suave entre duas nuvens no reflexo do céu. Fiquei besta.

Petrificado. O motorista voltou pra dentro da BMW e ficou esperando. A consciência foi voltando, aos poucos fui amolecendo e de repente eu já estava elétrico, não podia acreditar que eu estava envolvido nisso! "Max Cherry, o detetive que comeu a sorte de quatro". Comecei a apertar outro baseado.

Liguei o rádio na JBFM. Acendi a erva. Puxei bonito uma bela tragada pensando na implicação daquela visita. Tudo o que eu via também estava sendo gravado com a minha filmadora CDD 250H, lembrei.

Posicionara a câmera para pegar justamente a entrada daquele edifício, então era só uma questão de tempo até eu chegar em casa e checar a carne, mas... a olho nu... aqui e agora... eu tenho a mais absoluta certeza de que era Friboi aquela picanha repousada nos braços de Fábio Luís Lula da Silva.


domingo, 24 de janeiro de 2016

Trago a verdade em dois tragos

Pedi pros classificados tirarem o meu anúncio de detetive particular. É temporário, peguei um peixe grande, cobrei o extra da exclusividade. E hoje é domingo.

Domingo é o dia em que as pessoas compram o jornal pra ler os classificados, até porque a edição de domingo não estampa muitas novidades, nenhum parecer sobre amigo do Lula é premiado com redução de pena no sábado. A justiça não anda em dia de praia.

O povo lê os classificados. Os desempregados procuram trabalho, ofertas baratas de cara escravidão. Os corretores procuram apartamento, ofertas caras de barato aperto. Os motoristas procuram automóvel, ofertas robustas de claro consumismo. Os, digamos, necessitados procuram a seção injustamente confundida com a de massagens, ofertas exuberantes de caras e moças. Os desconfiados e vingativos procuram por mim.

Hoje não, hoje dou a vez pra concorrência. Hoje esse cara não sou eu, nos próximos cinco hojes, meus olhos e ouvidos são todos de nossa majestade o Rei Roberto I.

Quando meu anúncio é exibido nas edições impressas e virtuais dos classificados e páginas amarelas, chove cliente. Não chove dinheiro, porém. Eu preciso garimpar um ou dois casos aceitáveis. Às vezes, eu atendo o telefone, dou uns conselhos sentimentais... e só.

Claro que eu gosto de acreditar que chove cliente porque eu sou um renomado detetive. Mais fácil admitir que o meu anúncio dá mais resultado que o meu trabalho.

CHAPÉU DE VACA?
Trago a verdade em dois tragos,
o terceiro é por minha conta.
Mister Bonder - O seu detetive
particular na cola da justiça.
LIGUE A COBRAR! (9090) 2508-BONDER


sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Ex-BBB cornando alguém?

Liguei pro meu informante na Urca. Muita gente vai trair na mureta da Urca. Muita gente famosa frequenta a Urca. Roberto Carlos mora na Urca. Achei que seria um bom começo. Ele atendeu.

— Fala tu Marquinho! — ele nunca entendeu que o meu nome não era Marcos...

— Fala meu chapa, como é que vai Dona Dalva e as crianças?

— Tão bem, o Tauã tá aprendendo violão direitinho, brigadão de novo, viu Marquinho... leva jeito o moleque! E ah, a Dalva tá linda, esperando o terceiro!

— Opa! Tu não brinca em serviço hein, Ferro!

— Tá no nome, você sabe...

— Falando em serviço, tu não vai acreditar...

Fui um pouco mais sério agora, deixei a frase no ar dando a entender a seriedade do trabalho e esperei ele perguntar do outro lado. Não perguntou. Ficou sério. Esse Ferro não brinca em serviço!

— É um caso de celebridade, mas quem me procurou foi um cara qualquer, desconhecido...

— Ih, subcelebridade de novo, ex-bbb cornando alguém?

— Não, o cara que pediu o serviço era um ilustre desconhecido sim, o serviço é bem parecido, tô achando que vou ter que me passar por jornalista de novo, mas o alvo é bem diferente...

Silêncio. E depois mais silêncio.

— E aí?

— Roberto Carlos. — respondi dando atenção especial a cada fonema, do rrr ao sss.

— Maluquice isso!

— É eu sei, o Rei não sai de casa... vigia, segurança, guarda-costas...

— Não! Maluquice! Ele está aqui na minha frente! Jantou no Garota da Urca e tá dando autógrafos aqui na mureta. Rei Roberto! Meu amigo é seu fã número um! Tá aqui no celular, dá só um oi, pelo amor de Jesus Cristo!

Eu não podia acreditar. O Ferro é um pé-quente nato! Muito barulho do outro lado da linha e então...

— Alô!

— Rei Roberto?!

— Fala, bicho!

Então eu respirei fundo um segundo me concentrando e me preparando pra soltar a minha isca.

— Sei que eu preciso ser rápido, a minha mãezinha está morrendo, ela sempre quis ler a sua biografia, mas ela não conseguiu comprar a tempo, porque o senhor mandou recolher. Ela é apaixonada pelo senhor, pela sua carreira, suas músicas...

— Nossa, como é o nome dela? O que ela tem?

— Câncer! Câncer... — quase pareci feliz demais. — Será que eu posso encontrar o senhor e conversar melhor pessoalmente? Ela gostaria muito de conhecê-lo, mas sei que é muito complicado alguém como o senhor fazer uma visita em uma unidade tão abandonada do Inca como a de Vila Isabel, ainda tem as implicações políticas, comerciais, então se a gente pudesse conversar pessualmente eu...

— Seu amigo dá o seu número pra um dos seguranças... ah... ele acabou de me dar um papel com o seu telefone... vou te ligar, Mar... quinhos. Você não me disse o nome da sua mãe...

— Ééé... Dalva.

— Tá bom, Marquinhos, mande um beijo meu pra ela, fiquem com Deus, bicho. Vou ligar pra você.

— Nossa Senhora, obrigado Rei Ro... — e "Byyye"... a ligação ficou muda.

Em seguida o Ferro me ligou de novo. Mas a gente não tinha mais o que falar. Foi um silêncio bom. Desliguei na cara dele e acho que ele não deve ter se importado, foi quase sem querer. Acendi um beque. Euforia.

Nem passava pela minha cabeça que o memorável Roberto Carlos poderia nunca mais lembrar do meu nome falso, da minha história falsa, da minha mãezinha moribunda falsa. Deu certo. Eu tinha certeza. Ele ia me ligar. Eu estava mesmo eufórico, não era só o baseado.

Pulinho de táxi no Garota do Flamengo, adoro carne na chapa quando me sinto comemorável. Belo começo! Noite agradável... iscas de picanha bem gordas e mal-passadas pra mim. O alvo comera a isca.


O sonho da dona de casa brasileira

Chegou um cliente incomum assim que eu voltava de um pulinho na rua pra comprar cigarros. Eu o interceptei antes que tocasse a campainha e estragasse o resto do meu dia. Ele parecia normal na hora, eu é que parecia um detetive incomum, por volta dos sessenta, calça de pijama, camisa polo, jaqueta, chinelos, cabelos...

— Vamos tomar um café ali na esquina, eu vou só vestir alguma coisa, você espera aqui? Qual seu nome mesmo?

— Espero. Raul.

— Prazer, Raul. Não toque a campainha por favor... — eu tinha que me prevenir...

Gritos a esmo de uma mulher ensandecida durante a minha rápida incursão ao lavabo. Troquei a calça do pijama por um jeans aceitável, dei uns tapas no meu chapéu e sufoquei a cabeleira revoltada. Fechei a porta do apartamento sufocando os berros atrás de mim.

O café da esquina era forte como um expresso italiano de verdade, como a minha irmã dizia. Eu não bebo café, mas quem bebe gosta. Sentamos em uma das mesinhas na calçada, onde ainda dava pra ouvir o DVD "Emoções em alto mar" do Roberto Carlos que sempre tocava lá dentro. Era agradável. Pedi um expresso curto pro cara e um chocolate gelado pra mim.

Finalmente acendi o meu cigarro. Àquela altura o cara, Raul, começou a parecer ansioso, mas nada fora do comum, não houve nada fora do comum até ele escrever um nome no guardanapo antes de sairmos do café e nos despedirmos.

Raul parecia um cara de classe média, uns trinta, roupas de loja de departamento não muito novas... começou dizendo que queria que eu seguisse uma pessoa e descobrisse um amante. O de sempre.

Ele bebeu o café curto, eu virei o chocolate gelado, acertamos os detalhes, ele aceitou os meus honorários sem hesitar. Pagou a conta e uma semana de trabalho adiantada em cash. Pedi que anotasse em um guardanapo os dados do meu alvo. Mas pra meu espanto Raul escreveu apenas um nome, um nome duplo. "Roberto Carlos".

O susto me fez soluçar alto um arroto do leite. A onda da erva foi embora. Olhei pra ele com cara de quem pergunta "Tu tá de gracinha com a minha cara?!" e ele me respondeu com o olhar de quem diz "Pode apostar o rabo que o papo é reto". A gente já ia se despedindo, eu dei um tchau meio automático e virei de volta a caminho de casa com o rabo na mão, o dinheiro no bolso e a larica batendo. Não sei o que diabos Raul quer com Roberto, o que sempre importa é que a grana sempre faz falta e a fome sempre aperta depois que a onda passa.

Um pulinho rápido de táxi no McDonald's da Dois de Dezembro com meu notebook. Chove, o Catete alaga. À minha frente, muita água e o sonho da dona de casa brasileira, sete dias com o Rei dos sete mares.


Já volto

É curioso, um amigo meu sempre dizia que eu podia largar o cigarro facilmente se acendesse um baseado a cada vez que sentia a abstinência do tabaco, vulgo vontade excruciante de fumar um cigarro.

Estou sem cigarros e percebo que isso não funciona, mas vamos seguindo na erva até que a erva acabe e um pulinho na rua pra comprar um maço se torne inevitável mesmo.

Um tapinha na pantera sempre dá vontade de fumar um cigarrinho... saco... vício infernal, ah se eu pudesse curtir meu doiszinho e meu blogzinho em paz...

Trouxe o notebook pro banheiro e agora posso descansar dos ataques histéricos da minha irmã sem ver o tempo passar nessa máquina esquisita que muda a realidade.

Ela reclama, o notebook é dela, mas ela grita por tudo, não faz diferença, de qualquer jeito eu já dei um jeito de trancar a porta do lavabo por fora!

Uns gritos a esmo e a rua já está barulhenta e deliciosamente silenciosa.

Vamos lá, cigarros.

Já volto.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Por favor, mande o dinheiro

Senhor(a) leitor(a),

tenho cinquenta e seis anos e tenho passado tempo demais no banheiro. Minha irmã veio morar comigo e eu estou de mudança para o banheiro. Um pouco de paz entre um ataque histérico e outro no banheiro.

Agora é um ataque histérico entre uma viagem e outra do quarto improvisado no jardim de inverno direto e reto para o, banheiro não, lavabo. Pouco a pouco vou me mudando do meu sala e suíte para o meu vaso e pia.

O caso é que a minha irmã é histérica e é rica. Matou o marido de histeria. Eu ria, mas ela enriqueceu, enviuvou, enlouqueceu de vez, incendiou um batalhão dos bombeiros... internou, escapou... agora ela se instalou na minha suíte, a sacana da Rita. Levou meu sorriso...

O lance dos bombeiros foi na Itália. Na verdade ela comprou o apartamento pra mim antes de enviuvar. Nunca achei que o imóvel estar no nome dela faria alguma diferença pra mim no futuro.

Hoje ela se esconde aqui. Não aqui no lavabo. Aqui no lavabo quem se esconde sou eu...

Peço encarecidamente doações. Não está fácil. O que eu ganho como detetive particular não resolve o meu problema. Os dados da conta estão na folha anexa.

Vou mandando notícias, mas por favor, mande o dinheiro.

Cordialmente,

Max.