quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Terrinha de pavões e galos de briga

Vesti meu terno vermelho pela primeira vez em um dia quente. Arranquei o microfone da mãos trêmulas de sensacionalismo barato da Repórter Kauso da Record.

Titular em inserts de fofoca em programas de bosta, Solange Kauso cumpria o seu plantão policial para o Cidade Alerta na segunda-feira gorda mais surreal da minha vida. Seus braços tremiam, tremiam... como os braços de quem encena um ataque epilético. Em uma peça infantil mal escrita, mal dirigida e mal atuada. Ou uma caricatura disso. E então parou de tremer. Abocanhei o trombone.

A minha chance de aparecer. As coisas mudaram, sabe? O mundo mudou. No meu tempo de garotão você era bom em alguma coisa... e se você era muito bom em alguma coisa, você se destacava. Aparecia. Era premiado com o prestígio... e a popularidade vinha como a chuva vem depois de um dia muito quente. Comecei a falar olhando pra câmera. Começou a chover.

As coisas mudaram, a ordem das coisas mudou. Hoje, primeiro, você aparece. No mundo ocidental como um todo, algumas pessoas chegam a provocar situações grandiosas, violentas, constrangedoras. Quem nunca ouviu falar de Geisy Arruda?

Sempre me pergunto por que é que sempre a Luana Piovani vai parar na delegacia. A Luana Piovani sempre aparece. Inclusive nos inserts de fofoca da Solange. Tem gente que passa uma vida procurando uma oportunidade de aparecer. Não uma oportunidade de mostrar o talento, mas de mostrar a si. Talento tá difícil. E as penas, coloridas com Wellaton, precedem o pavão.

Estamos no Brasil do século XXI, terrinha de pavões e galos de briga. E hoje eu sou um galo velho com penas e olhos vermelhos, coloridos como os anos 70.

Era a minha chance de aparecer depois de muito, muito baseado e pouco, porém suado, trabalho. Eu era um galo velho com penas vermelhas, uma fita de vídeo no bolso e que não quer perder mais uma briga. A Rita foi assassinada, eu tinha como provar.

Aparecer na televisão e ganhar audiência às custas da morte matada da sua irmã não parece muito bonito. Tento pensar em todo o amor que ela nunca conseguia demonstrar.

Tento achar que foi um empurrãozinho póstumo. Uma mãozinha do além pra compensar todos os ataques histéricos, os ferimentos a faca e as horas e horas confinado de pernas dormentes sobre o acento da privada no lavabo/quarto/escritório/esconderijo. Alguns segundos de culpa e eu lembro que ela sofrera um crime fatal e merecia justiça. E eu era um galo velho de penas vermelhas e estava acuado. Nunca provoque um galo de briga.

Falei tudo com muita clareza. Olhei pro centro da lente, no diafrágma da câmera. As primeiras três ou quatro palavras saíram quase atropeladas, mas assim que eu percebi que não tinha mais como voltar atrás, o peso e o medo desapareceram. Como quando as cortinas abrem e um ator pisa no palco e as coisas mudam.

E assim, de uma hora pra outra, senti a minha plumagem púrpura e surrada aprumar-se. Metamorfose. As penas foram alongando e tomando algumas colorações exuberantes aqui e ali. Brilhavam como mágica. Mudei.

Falei tudo olhando pra menina dos olhos da câmera e dos milhões de brasileiros que assistem ao programa de barbáries da Rede Record. Carisma, determinação e cumplicidade. Brilhei como um pavão na avenida em sábado de carnaval.

Àquela altura os direitos humanos e a polícia federal também tinham aparecido. Depois de conversar com a Solange Kauso, conversei também com o Marcelo Freixo e o investigador da PF. Saí de casa só com a roupa do corpo, terno vermelho e panamá branco. A fita e os cigarros da Rita no bolso. Fui direto da aparição no programa Cidade Alerta para o Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas.

Eu precisava de um novo lugar pra ficar, mais seguro. Entrei no carrão do investigador Túlio Vega. Deixamos a Rua Silveira Martins. Ele perguntou se eu estava me sentindo bem. Sujeito gente fina esse Vega.

— O senhor tem certeza? Precisa passar em algum lugar? Deve ter algum remédio que o senhor precise, a gente passa numa farmácia... — claro que eu entendia a preocupação. Aconteceu muita coisa em um dia só pra um detetive velho como eu. Mas eu estava mesmo muitíssimo bem. Que jogada.... pela primeira vez naquele dia eu senti o vento soprando com vontade a meu favor. A primeira vez na vida. Adoro comer carne quando me sinto comemorável.

— McDonald's?


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