sábado, 13 de fevereiro de 2016

Cor de burro quando foge

Saímos do Copacabana Palace, os quatro no carrão do Sr. Vega. À frente, o próprio Túlio Vega, investigador da Polícia Federal e o veterinário das estrelas Dr. Polita no banco do carona. Atrás, o Capitão Ferro, eu e a Rita, que miava impaciente de dentro de uma caixa de papelão furada nas laterais. Na mala, a minha mala.

Eles também corriam perigo por seu envolvimento comigo. Todavia, somente eu estava sendo levado para um esconderijo isolado. Vega estacionou mal parado em frente a uma casa comercial velha e mal cuidada no Humaitá.

Eu deveria entrar e dirigir a palavra ao atendente na recepção. Fazer uma pergunta objetiva, "E a gota?". Ele deveria responder que foi ao médico e que não foi atendido, mas que não está nada bem. Eu deveria dizer "Nem U.P.A. 24H?" e ouvi-lo negar e completar dizendo que "A Dilma que se foda!".

Eu tentaria uma sugestão, "Já tentou o Hospital Estadual Pedro II?", e ainda ouviria "O Pedro II e o Pezão que se comam e se explodam cu a dentro!". Aí sim eu seria conduzido a um Chevette de placa fria e costas quentes. Depois, serra. Minas. Um retiro de meditação na cidade de Carrancas, trezentos quilômetros ao sul de B.H. Não sabia como arranjaria trabalho estando isolado no mato com neo-budistas mas, se tem uma coisa que me compra, essa coisa se chama Despesas Pagas.

A casa comercial que eu observava da calçada parecia lotada. Parecia dia de festa. Na fachada, li:

"CASA DE XANGÔ
BABALORIXÁ MARIA DE XANGÔ
& FILHOS DE SÃO JUDAS"

Não era festa, mas tinha música e alegria. Fiquei curioso, nunca entrara num terreiroaSubiEntreiontreioo degraus e meio e toquei a campainha. Ninguém ouviria. Testei a porta e ela abriu.

Enfiei o resto do McFish goela a dentro. Desci os quatro degraus e meio, peguei minhas coisas. Me despedi das únicas três pessoas em que eu podia confiar. Ninguém respondeu. Subi novamente os degraus. Entrei.

O barulho ficava cada vez mais alto casa a dentro, mas não cheguei a ver ninguém. Subi as escadas para o segundo andar seguindo um rapaz surdo, mudo e cego. Um cômodo apenas, uma escrivaninha escolar no canto. Uma portinha e um banheiro. Um rádio/toca-fitas sobre o tampo da escrivaninha. Gambiarras na tomada. O ruído escruciante de uma caixa de som estourada no último volume. Uma fita reproduzia o som característico de um terreiro em noite de sessão aberta.

O menino surdo, mudo e cego desceu novamente as escadas. Saiu deslizando uma das mãos pela parede e coçando com o outro pulso a cicatriz no lugar dos olhos. Do banheiro, sai um vidente.

Ouvinte, falante e vidente. Ele para na minha frente. Estanque. Mau. Mede com o olhar a minha cara, o meu terno sob medida, a minha mala de ginástica e a minha caixa de papelão furada nas laterais. Olhos no útero dos meus olhos. Silêncio. Tirando o esporro religioso que tremia nos alto-falantes.

Achei que deveria dirigir minha palavra a ele. Tive que gritar pra me ouvir. E me fazer ouvir. E me esforçar para ouvi-lo, ainda que o falante também gritasse.

— COMO É QUE TÁ, TUDO BEM COM O SENHOR?

— TUDO BEM, E COM O SENHOR?

— TUDO ÓTIMO, E A FAMÍLIA?

— VAI BEM, OBRIGADO!

— POR NADA! E VOCÊ?

— EU O QUÊ?

— A FAMÍLIA.

— QUÊ QUE TEM?

— VAI BEM?

— A FAMÍLIA?

— É!

— VAI BEM.

— OBRIGADO.

— OBRIGADO.

— NÃO TEM DE QUÊ.

— IMAGINA. E A GOTA?

— FUI AO MÉDICO MAS NÃO TINHA ATENDIMENTO. NÃO ESTÁ NADA BEM.

— NEM A U.P.A 24H?

— A DILMA QUE SE FODA!

— JÁ TENTOU O HOSPITAL ESTADUAL PEDRO II?

— O PEDRO II E O PEZÃO QUE SE COMAM E SE EXPLODAM CU A DENTRO!

Desci pelos fundos levando a Rita. Ele me ajudou com a bagagem. Falei alguma bobagem. Ele não ouviu. Entramos no Chevette cor de burro quando foge, a Rita e eu. Viramos à direita seguindo o fluxo. Abri a caixa de papelão e deixei a Rita fazer as suas unhas no estofado do carona. Sumimos no Rebouças.


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